sábado, maio 4, 2024
Polícia

Vítimas de estupro vivem ansiedade e viagem de dois dias de ônibus após fim de atendimento a aborto legal em hospital referência

Alice* descobriu que a filha de 15 anos, Nayara*, foi estuprada por seu padrasto – avô de Nayara – depois de um teste de gravidez apontar que a adolescente estava grávida. Alice suspeitou do tamanho da barriga – era uma gestação, depois descobriram, de 29 semanas – e do “comportamento estranho” da filha, que relutou para contar a violência que sofreu. Após um boletim de ocorrência na delegacia, foram orientadas a procurar o Hospital da Mulher (antigo Pérola Byington) para que Nayara pudesse ter acesso ao aborto legal.

Pelo estágio avançado da gravidez, Nayara foi transferida para o Hospital Municipal e Maternidade da Vila Nova Cachoeirinha. Localizada na zona norte de São Paulo, é considerado referência há 30 anos em aborto legal e é o único da capital paulista a interromper uma gestação legalmente após a 22ª semana de gravidez.

Alice e Nayara buscaram o serviço em novembro, e três datas chegaram a ser marcadas e canceladas para a realização do procedimento. No fim do mês, foram informadas que o hospital não poderia fazer um aborto na 29ª semana de gestação. Três semanas depois, em 20 de dezembro, a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo confirmou que o serviço de aborto legal do Vila Nova Cachoeirinha estava sendo fechado provisoriamente.

No Brasil, meninas, mulheres e pessoas capazes de gestar podem ter acesso ao aborto legal em três casos: gestação decorrente de estupro, de anencefalia fetal ou de risco de vida à pessoa gestante.

“Na primeira e segunda vez que cancelaram, minha filha estava toda empolgada, de mala arrumada. Não aguentava mais ficar com o neném na barriga, com dor nos seios e embaixo da barriga, e tinha medo das pessoas perceberem. Na terceira vez que desmarcaram, já ficou mais desesperada”, lembra Alice.

A explicação que teve nas duas últimas datas era de que a Prefeitura de São Paulo não permitiu que a interrupção da gravidez fosse realizada – mesmo sob pressão do Conselho Tutelar do bairro onde mora, em uma cidade da região metropolitana de São Paulo (que não será citada para proteger as identidades das duas).

“O Vila Nova Cachoeirinha era nossa referência a nível nacional, que tinha profissionais, protocolos, laudos e um fluxo com a Defensoria Pública de São Paulo para ajuizar os casos, para que sejam tramitados na urgência necessária para garantir o direito ao aborto”, afirmou a Marie Claire diretora-executiva do Projeto Vivas, Rebeca Mendes, que possui articulação direta com os serviços do país.

Alice e Nayara precisaram recorrer ao Projeto Vivas, ONG que conecta brasileiras a serviços de aborto legal no Brasil e América Latina, para conseguir acessar uma instituição de referência em aborto legal no Nordeste do país. “Passamos 2 dias e 5 horas em um ônibus, com minha família me mandando dinheiro no caminho para comer e apoio para ela. Na volta, viemos de avião. Quando ela fez o procedimento, estava com 31 semanas de gestação. Foi uma situação muito delicada”, conta.

Ao regressar ao estado de São Paulo, mesmo com atestados médicos de acompanhante, Alice perdeu seu emprego por ter acompanhado a filha. Para conseguir acesso ao aborto legal, ambas passaram cinco dias longe de casa. O padrasto de Alice, que violentou Nayara, está foragido e é procurado pela Polícia Civil.

O encerramento do serviço também impactou Jéssica*, 36 anos, que foi vítima de violência sexual e está chegando a oitava semana de gravidez. Ela descobriu a gestação em 4 de dezembro. No dia seguinte, foi para o Vila Nova Cachoeirinha, onde realizou todos os exames e passou pela assistência social e psicologia.

A consulta com a ginecologista ficou marcada para o dia 20 de dezembro, data em que a Secretaria Municipal de Saúde suspendeu a continuidade da realização do procedimento no local. “Fui preparada: levei uma troca de roupas, roupa íntima e absorvente. A médica comunicou a decisão da Secretaria mas disse que eu não ficaria desamparada”, conta.

Jéssica foi orientada a procurar pelo Hospital da Mulher, onde descobriu que teria de passar por todos os exames, entrevistas e consultas novamente.

Ela foi informada de que faria a consulta psicológica no fim deste mês e, no início de janeiro, a consulta com a ginecologista. “Fiquei bastante ansiosa, porque já havia passado por tudo isso e relatado a situação no Vila Nova Cachoeirinha. Tudo me faz lembrar muita coisa, tem muitos gatilhos nessa história. Ficar relatando tudo de novo é muito doloroso para mim”, diz.

Serviço de aborto legal do Hospital Municipal e Maternidade da Vila Nova Cachoeirinha é fechado pela Prefeitura de SP — Foto: Reprodução/Prefeitura de São Paulo
Serviço de aborto legal do Hospital Municipal e Maternidade da Vila Nova Cachoeirinha é fechado pela Prefeitura de SP — Foto: Reprodução/Prefeitura de São Paulo

Jéssica afirma ter sido informada no Hospital da Mulher que o acesso ao aborto legal não estava garantido: a orientação que diz ter recebido é de que, depois da consulta com a ginecologista, a equipe médica faria uma reunião para avaliar se o aborto seria ou não realizado.

“Senti uma resistência e desconfiança da médica que me deixaram desconfortável. É uma situação difícil e uma dúvida enorme. Meu maior medo é não conseguir fazer o aborto. Estou bem apavorada”, narra Jéssica, que tem tido crises de ansiedade.

No último dia 21, o Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem) da Defensoria Pública de São Paulo emitiu um ofício que pede para que o atendimento de Jéssica seja priorizado no Hospital da Mulher. O ofício também determina a garantia da continuidade do atendimento com aproveitamento de consultas, atos, entrevistas e exames previamente realizados no Vila Nova Cachoeirinha para evitar “a revitimização da paciente”.

Dificuldade de acesso ao aborto legal após a 22ª semana de gestação

 

Rebeca Mendes afirma que, no fim de novembro, a Secretaria Municipal de Saúde proibiu que os procedimentos fossem realizados acima da 22ª semana. O Vila Nova Cachoeirinha era um de quatro hospitais de todo o país que davam continuidade ao procedimento após esse período.

Foi o caso de Mariana*, 28 anos, que, em 6 de dezembro, chegou ao Vila Nova Cachoeirinha com 22 semanas e 3 dias de gravidez. “Passei pela assistente social e psicóloga, fiz exames de sangue e, por último, o ultrassom. Aguardei o atendimento da médica das 9 da manhã às 4 da tarde só para receber um não”, conta.

Por meio do Vivas, Mariana foi transferida para uma unidade hospitalar em outro estado do Sudeste, onde conseguiu realizar o procedimento. Ela estava com 24 semanas de gestação. “O procedimento foi difícil porque tive complicações e muita perda de sangue. Tive que fazer uma cesárea com urgência, mas estou bem. Fui bem amparada, as profissionais deste hospital foram uns anjos na minha vida em um momento que estava sendo super constrangedor.”

A prefeitura de São Paulo estipulou o limite porque ele consta na Nota Técnica Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes do Ministério da Saúde, de 2012.

Mas o próprio MS voltou atrás neste entendimento neste ano, ao emitir ofício por meio da Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS) e da Secretaria de Atenção Especializada à Saúde (SAES). O texto pontua que obrigar uma vítima de estupro de manter uma gestação depois de 22 semana é “grave violação de direitos humanos” e reforça de “não existe um prazo gestacional fixo para a realização do aborto decorrente de estupro ou qualquer outra circunstância legalmente prevista”.

Além disso, nem os Artigos 124 e 126 do Código Penal, que criminalizam o aborto, e nem outras legislações brasileiras estabelecem um limite de idade gestacional para que um aborto legal seja realizado.

O que diz a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo

 

De início, o fechamento do serviço de aborto legal do Vila Nova Cachoeirinha não foi comunicado oficialmente pela Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo. A notícia começou a espalhar por meio de movimentos sociais, entidades de ginecologia e obstetrícia e profissionais de saúde que são referência.

A pasta municipal confirmou o fechamento em nota enviada à colunista Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo, na última quarta-feira (20). Nela, afirma que o serviço foi suspenso temporariamente, e não cita previsão para que o aborto legal volte a ser feito no espaço. A pasta alega que os atendimentos foram paralisados para que sejam realizadas no hospital “cirurgias eletivas, mutirões cirúrgicos e outros procedimentos envolvendo a saúde da mulher”.

Rebeca Mendes no entanto, afirma que, um dia antes (19), a pasta afirmou que o serviço havia sido fechado por “baixa demanda”. O Vila Nova Cachoeirinha realizava 20 atendimentos mensais relacionados ao aborto legal.

No dia 20, Marie Claire questionou a Secretaria sobre a imposição de limite de até 22 semanas para interromper a gestação, a justificativa de baixa demanda que teria sido informada no dia anterior e o número de atendimentos do hospital nos últimos cinco anos. A reportagem enviou as perguntas por e-mail, e chegou a conversar duas vezes com uma funcionária da comunicação da Secretaria via telefone, mas não obteve retorno.

O site da Prefeitura de São Paulo indica quatro hospitais de referência que se pode recorrer para realizar o aborto legal: Hospital Municipal e Maternidade Prof. Mario Degni, Hospital Municipal Tide Setúbal, Hospital Municipal Municipal Dr. Fernando Mauro Pires da Rocha e Hospital Municipal Dr. Carmino Caricchio. Marie Claire também questionou se essas instalações farão o procedimento mesmo quando a idade gestacional ultrapassar a 22ª semana, mas também não teve retorno sobre o assunto.

Defensoria Pública de São Paulo questiona fechamento do serviço

 

O Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem), da Defensoria Pública de São Paulo, emitiu um ofício em que questiona o secretário Luiz Carlos Zamarco sobre o fechamento do serviço de aborto legal do Vila Nova Cachoeirinha. O Núcleo também pede o “imediato recredenciamento” do espaço para a realização do procedimento.

O texto afirma que “as informações requisitadas são imprescindíveis para a adequada defesa dos direitos difusos e coletivos de mulheres e meninas vítimas de violência sexual e usuárias do SUS”. Diz ainda que a falta de atendimento especializado nos casos em que o aborto é legal pode ser considerada uma “violação aos direitos de dignidade, saúde sexual e reprodutiva”.

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